Capítulo 10 - Ordem e caos

 

 

- Por todos os deuses, Saheth. O que você fez com ele?


A voz parecia distante e familiar.


- Eu fiz exatamente o que devia fazer.

- O que devia fazer?! Ele é só um menino... Se tiver mais do que oito ciclos é muito.

- Só um menino?


Uma das vozes era a garota.

A outra... O torturador.

Uma semana havia se passado desde que Yue havia sido colocado na solitária.

Dizem que não existe nada mais enlouquecedor para um ser humano do que ficar sozinho em um espaço confinado.

Sem interações... Sem nada para ocupar a mente... Sem ter como saber que horas são ou quanto tempo se passou...

As suplicas costumam vir antes da metade da sentença.

Já Yue, nesse período, estava ardendo em febre.

...Exatamente como a garota havia dito que iria acontecer.

Foi quando teve a impressão de vê-la entrar em sua cela.

Ele não soube dizer se era realidade, sonho ou alucinação. Queria ataca-la para que não chegasse perto, mas estava fraco demais para se mover e só teve certeza absoluta do que aconteceu quando acordou, provavelmente horas ou até mesmo um dia inteiro mais tarde, sentindo alívio das dores e percebendo que mais uma vez estava vestido.

Decidiu mais uma vez resolver a situação e pela terceira vez rasgou seu uniforme.

Foi isso que o levou exatamente para aquele momento.

 

- Eu levei horas apenas para ter certeza que esse moleque não é mudo! Você sabe o quão difícil foi faze-lo gritar? – o torturador falou. – Achei que espanca-lo seria o suficiente. Qualquer criança se renderia depois de algumas boas pancadas, mas...

- Ah, cala a boca. Eu não quero saber dos detalhes.


Yue tentou se mover, mas foi em vão.

Estava vendado, deitado de barriga para cima com as mãos e pernas presas a algum tipo de cama.

 

- Não vejo sentido em tratar as feridas dele apenas para que você o machuque de novo.

- Ordens do capitão. Ele não quer que o garoto morra. Quer que ele desista e coloque o maldito uniforme.

- E precisava chegar a esse ponto? Você arrancou a pele dos dedos dele?

- E um pouco das costas... – pausa. – É a porra do meu trabalho!


Yue se remexeu quando sentiu suas feridas arderem.

Estava sendo tratado, mas isso não parecia muito diferente da tortura.

 

- ...Além do mais. Ele só precisa dizer que desiste e tudo acaba. Uma única palavra.

- E ele não disse?

- Se tivesse dito você não estaria aqui o remendando.

 

Batidas na porta.

Silêncio.

Passos se afastando.

 

- Você é mesmo burro, não é? – a voz feminina, perto de seu rosto e sussurrando. – Quando ele voltar, diga que desiste. Vestir o uniforme não pode ser pior do que isso...

 

Os passos retornam.

 

- O que ele queria? – ela pergunta. – Acabou?

- O garoto fica...

 

Ninguém diz mais nada.

As feridas são tratadas, passos se afastando. A porta se fecha.

 

- Somos só nós dois novamente, moleque. Alguma coisa a dizer?

 

Silêncio.

A tortura recomeça.

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Yue abre os olhos e tenta se mover.

Seu corpo inteiro dói, mas especialmente os dentes e a cabeça.

Não consegue enxergar com um dos olhos, mas se vê sentado.

Fitas de couro prendem seus braços, pernas e tronco junto a cadeira.

Hematomas, cortes, sangue... Dois dedos faltando.

A porta se abre e a garota entra.

Sozinha?

Onde ele está? Onde está a pessoa que ele precisa matar?

Onde está seu torturador?

 

Seus olhos vasculham a sala e... Ali...

Recostado em um canto com um ar irritado e cansado.

Uns quinze anos, cabelos pretos, uniforme coberto de sangue.

...Seu sangue.

O “açougueiro”, como ele mesmo havia dito ser o seu apelido.

 

A coisa começou com “Trinta minutos, capitão. É tudo o que eu preciso.” e migrou para “Eu vou te fazer desistir nem que seja a ultima coisa que eu faça.”.

 

- Não é assim que funciona... Não vai acontecer. – a garota falou quando se aproximou, abrindo a bolsa de couro e começando a tirar tudo o que precisaria, mas nem por um momento Yue desviou o olhar de seu alvo. – Você não vai matá-lo... Não vai sequer encostar nele.

 

Mais dor.

E a fraqueza gerada pela quantidade de sangue perdido.

 

- Você está sentindo esse cheiro? Isso é necrose... E pus... – falou primeiro para Yue e depois aumentou o tom de voz para que o açougueiro também pudesse ouvir. – Ele não vai durar.

- Faça durar.

- Tem certeza?

- São as ordens, porra!

 

A garota remexeu sua bolsa e retirou um pequeno frasco de dentro dela.

 

- Beba isso...- Yue não se moveu. – Por favor?

 

Nada.

Do outro lado da sala o açougueiro veio a passos firmes.

Desferiu um soco contra o rosto de Yue, depois o segurou pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás com violência.

 

- Você vai beber! – então apertou sua boca para que abrisse. Um pequeno vão se formou enquanto ele tentava resistir. – Vai! Derrama essa merda na garganta dele.

 

A contra gosto a garota obedece.

O líquido flui, descendo pela garganta e fazendo Yue engasgar e tossir.

Primeiro sente seu corpo esquentar como se estivesse em chamas.

As dores diminuem um pouco e algumas feridas param imediatamente de sangrar.


- E aí? – o torturador pergunta, largando Yue e se afastando.

- Ele tomou uma poção. Não vai regenerar o que perdeu... Mas vai aguentar mais um pouco.

- Bom.

- Bom?

 

Os dois se encaram por um momento.

 

- Essas são as minhas ordens... Você tá entendendo? – o garoto fala por entre os dentes. – E são as suas também.


Ela mantém o olhar por mais um momento, então suspira e se afasta por onde veio.

 

- Me faça um favor, Saheth. – fala prestes a ir embora. – Chame qualquer outra pessoa amanhã. Me deixe fora disso...

 

A porta se fecha e Yue e Saheth se encaram.

               

- Não se preocupe. – o torturador fala pra si mesmo em voz baixa. – Isso acaba amanhã.

 

 

O som da gota caindo na poça vem a cada vez que Yue conta até cinquenta.

 Ele está pendurado pelos braços numa espécie de mastro. Seus pés balançam soltos, alto demais para que toquem o chão.

 

- Eu vou baixar as correntes especialmente pra você. – Saheth falou. – Apenas para que eu possa olhar bem nos seus olhos quando desistir.

 

Isso foi há horas atrás.

Agora o garoto mais velho estava sentado numa mesa e batia repetidamente com uma faca contra o tampo de madeira. Ele olhava para Yue com uma mistura incrédula de raiva e frustração.

Finalmente ele cravou a faca na mesa e se colocou de pé diante do garoto.

 

- Você vai morrer... É isso.

 

Apesar do rosto inchado de Yue, ele reconhecia a intenção assassina em seu olhar.

Primeiro ele havia mantido a venda. As coisas tendem a ser mais assustadoras assim. Geram ansiedade e medo.

Mas quando você pretende causar certos danos é bom que a pessoa consiga ver.

É absurdamente angustiante ver uma parte de si sendo arrancada fora.

Mas Yue não olhava para onde devia olhar.

Não importa o que fizesse com ele. O garoto simplesmente o encarava daquela mesma maneira.

Mesmo agora, quando parece prestes a desmaiar.

 

- Isso não é normal... Você não é normal. – respirou. – Nenhuma criança passa por isso desse jeito.

 

Saheth vai até a faca e a arranca da mesa.

 

- Diga... Valeu a pena? Tudo isso por que? Por causa de um maldito uniforme? Por que não quer obedecer?

 

Ele aponta a faca para o garoto. Os olhos de Yue parecem querer se fechar.

 

- Não, não! – ele se aproxima e da um tapa em Yue. – Nada de dormir agora. Vamos... – um segundo tapa.

 

Ele pressiona a ponta da faca contra o ombro do garoto, perfurando pele e carne, atingindo um nervo e fazendo com que desperte e se contorça de dor.

 

- Eu quero uma resposta... – sussurra.

 

Então acontece.

Pela primeira vez Saheth vê Yue mover seus lábios.

O som vem fraco. Um sussurro balbuciado.

O torturador sorri.

O garoto estaria desistindo? Finalmente?

Ele se aproxima, curvando a cabeça e oferecendo o ouvido para ouvir melhor. Saboreando o momento até que...

 

O grito de dor não vem de Yue.

Saheth tenta forçar a faca, mas isso apenas faz com que o garoto aperte com ainda mais força os seus dentes.

Rosnando como um animal, Yue apoia seus pés contra o corpo de seu torturador e o empurra com força.

O sangue jorra de seu pescoço quando ele cai e o moleque cospe o naco de carne para o chão com o rosto coberto do líquido vermelho.

O açougueiro tenta, em vão, conter o sangramento com a mão.

Ele se força a ficar de pé, o coração batendo rápido.

Sabe que precisa pedir ajuda.

Nesse ritmo... Ele vai...

 

Saheth cai antes de chegar até a porta e seu sangue cobre o chão.

Moon Ghost

Escritor, designer, fotografo, musico, programador, ator, jogador, artista marcial e o que mais der na telha. Criador de mundos e alterador de realidades nas horas vagas.

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