Capítulo 16: O Diário de Ewarg Bericwa

Ewarg Bericwa
Décima quinta noite de Benicola do quarto ano de Raquin O Grande
Vilarejo de Polmon

 

O frio se foi e junto dos agradáveis dias de primavera também vieram às oportunidades.

Esta noite fui ao encontro de uma jovem senhora a quem passo a prestar meus serviços até que conclua sua curiosidade ou revogue nosso contrato.

O pagamento é bom e não posso dizer que a tarefa não me interessa.

Há muito que vago por estes vilarejos e ouço as histórias a respeito de Cythir Xuseror, a ilha a leste daqui. A lenda diz que séculos atrás, durante a guerra dos deuses, uma imensa bola de fogo caiu do céu sobre a montanha de Rashaag.

Por estas bandas acredita-se que desde então um deus habita aquelas cavernas, adormecido, recuperando-se ou esperando ser desperto para que possa voltar ao seu lar no outro mundo.

Já em Asadorn, o vilarejo há cerca de vinte quilômetros daqui, é dito que um demônio foi preso naquela caverna. Um deus expulso dos céus e punido por seus irmãos pelos seus atos nefastos.

A discussão sobre o que é verdade ou mentira sobre tudo isso ainda é motivo de rivalidade entre os cidadãos de ambos os locais, mas de modo geral todos concordam quanto a tal bola de fogo vinda dos céus e sobre os perigos daquele lugar.

Parece que desde aqueles tempos a região é habitada por monstros dos mais diversos e que também quase ninguém se atreve a passar muito tempo por ali.

Pois eu, Ewarg Bericwa  digo: Veremos!!!

Que urso deixa de colher o mel por medo de abelhas?

 

Vigésima sexta noite de Benicola do quarto ano de Raquin O Grande
Vilarejo de Polmon.

 

Finalmente!

Dez dias até finalmente completar os preparativos para a expedição.

E tudo por que os homens dessas bandas morrem de medo da maldita ilha.

“Cythir Xuseror deve ser deixada em paz”. É o que dizem entre outras besteiras como “não devemos nos meter em assuntos de deuses e demônios." ou “Ninguém jamais voltou de lá.”.

Ora! Pois se ninguém jamais voltou, como é que sabem da existência de monstros?

Mas não importa!

Dez homens corajosos eram tudo o que eu precisava e foram dez homens que consegui. Nem mais e nem menos.

Partimos no dia da primeira noite de Egregoro.

 

Dia da segunda noite de Egregoro do quarto ano de Raquin O Grande
Margens litorâneas de Cythir Xuseror.

   

Pois sobrevivemos para dizer que realmente há monstros por essas bandas.

A viagem foi tranquila com o barco deslizando por um mar mais calmo que um cão manso e conforme nos aproximávamos pude ver o quão bela a Ilha de Cythir Xuseror realmente é.

Montamos nosso acampamento e fui recompensado ao gastar parte do primeiro dia fazendo um reconhecimento da entrada da caverna.

Um homem precavido é a ruína do descuidado, segundo o dito popular.

E eis que durante a noite, quando os diabretes vieram para cima de nós acreditando que nos surpreenderiam, foram eles a correr com o rabo entre as pernas.

Apenas dois homens tiveram ferimentos leves. Um por tropeçar e o outro na luta.

Ao contrário do que se acredita, diabretes tem certo nível de inteligência e sei que quando for nossa vez de investir precisaremos estar duplamente preparados.

Há um ninho desses malditos monstrinhos naquela caverna e não conseguirei realizar meu trabalho se não forem mortos ou expulsos.

O que vier primeiro é lucro.

 

Terceira noite de Egregoro do quarto ano de Raquin O Grande
Interior da caverna de Rashaag.

 

Um ninho, eu disse.

E a maior parte deles nós matamos.

Foram dois dias cheios, mas o combate tomou conta principalmente do primeiro. Depois foi só questão de se livrar dos corpos e transferir o acampamento para dentro da caverna.

O cheiro não é dos melhores, mas é menos exposto e consequentemente mais seguro.

Tomamos o lugar onde os pequenos demônios se abrigavam. Uma secção da caverna onde uma espécie de altar foi construído há muito tempo.

Acredito ser esta a primeira pista para resolver o mistério de Rashaag.

 

Dia da quinta noite de Egregoro do quarto ano de Raquin O Grande
Margens litorâneas de Cythir Xuseror.

 

Depois de dias investigando finalmente relato minhas descobertas, mas me recuso a fazer isso no interior fétido daquela caverna.

Posso afirmar com certeza que o altar foi construído durante a era da Guerra dos Deuses, mas não consigo dizer para qual objetivo.

Há uma fenda na pedra que para olhos descuidados não pareceria mais do que um buraco qualquer, mas tenho certeza que se trata de algo mais. Durante o dia um feixe de luz atravessa um buraco no teto da caverna e ilumina diretamente o altar, sendo que em determinado momento a fenda fica bem ao centro deste feixe.

As outras passagens da caverna não levam a lugar algum. Há apenas um corredor em linha reta que foi entalhado na própria montanha até parar diante de um grande bloco de pedra lisa.

Pelos recortes laterais parece se tratar de uma porta, mas não encontro meio de abri-la.

O que estou deixando escapar?

Até o momento nada mais dá qualquer informação sobre o que falam deste lugar.


Quinta noite de Egregoro do quarto ano de Raquin O Grande
Interior da caverna de Rashaag.

 

Malditos diabretes!

Eu quebrando a minha cabeça e a resposta estava com um deles esse tempo todo.

Fomos atacados pouco depois do pôr do sol e eis que entre os corpos imundos dessas aberrações encontro um artefato que se encaixa com exatidão na fenda do altar.

Trata-se de uma haste não muito mais comprida que um braço. Em uma das extremidades há uma lâmina e na outra um cristal multifacetado, tão bem esculpido que mesmo a luz das tochas o faz brilhar. Por si só esse objeto já deve valer alguma coisa.

Alguns homens se feriram durante esse ultimo ataque e posso perceber os humores mudando.

A visão do cristal parece lhes dar esperança de encontrar tesouros, mas o tempo que passamos sem progressos somados ao ataque de criaturas que supúnhamos vencidas aumenta a saudade de casa.

Espero que sob a luz do sol de um novo dia seus humores se recomponham.

 

Oitava noite de Egregoro do quarto ano de Raquin O Grande
Interior da caverna de Rashaag.

 

Mais uma vez movemos nosso acampamento.

Agora nos encontramos num espaço que parece ter sido esculpido na própria pedra.

O que antes não devia ser mais do que um grande buraco dentro da caverna, se transformou numa sala adornada por estes pilares circulares que se estendem do chão ao teto.

A maneira como foram esculpidos destaca relevos onde símbolos estão gravados.

Alguns parecem ter sido arruinados de propósito. Outros pelo tempo.

A maioria dos símbolos eu desconheço e os que penso conhecer não fazem qualquer sentido.

Ainda assim, acredito estar mais próximo da verdade.

Um dia toda essa caverna foi um antro de adoração.

Uma outra sala circular anexa a essa contém vestígios que indicam isso.

As pinturas na parede deveriam ser o suficiente para explicar a história toda e algumas delas concordam com o que é dito pelos aldeões.

Estou convicto de que durante a guerra entre os deuses um deles caiu sobre esta montanha e esta foi a tal bola de fogo vinda dos céus.

O ser estava ferido e se abrigou no interior dessa caverna.

Há uma pessoa que aparece ao seu lado em diversas pinturas, mas que teve seu rosto destruído em todas elas.

Em uma das imagens ela aparece cuidando do ser e imagino que tenha sido o motivo de sua recuperação.

O resto é suposição em cima de borrões…

Mas o que mais me chamou atenção foi a imagem feita em separado, provavelmente anos depois e não pelo mesmo artista.

Esta numa outra parede e retrata o ser celestial caído com um buraco em seu peito e lágrimas em seus olhos. Pessoas estão ao seu redor, mas a pessoa do rosto destruído não está ali.

Devo relatar esses achados à minha contratante.

Amanhã, três homens voltarão à cidade encarregados de trazer provisões e para conseguir cuidados de seus ferimentos.

Volta e meia é possível ouvir barulhos e risadinhas pela caverna.

Os homens estão cada vez mais apreensivos e irritados.

Temem serem mortos durante o sono ou atacados de surpresa enquanto fazem suas necessidades.

Mas por si isso é algo curioso.

Se este é um lugar santo, o que raios fazem diabretes aqui?

 

Décima terceira noite de Egregoro do quarto ano de Raquin O Grande
Interior da caverna de Rashaag.

 

A situação não está boa para nós e agora preciso pensar em como nos tirar dessa enrascada.

Enquanto esperávamos o retorno dos homens enviados para a cidade fomos novamente atacados.

Dessa vez dois homens morreram e fomos forçados para dentro dos interiores da caverna. Em certo momento nos vimos encurralados entre mortos vivos e diabretes e foi apenas por sorte que conseguimos escapar.

Apesar de fracos, os monstros são numerosos e traiçoeiros. Eles vão esperar uma oportunidade e é só questão de tempo até que consigam.

Temos mais chance se ficarmos juntos, mas é possível sentir o medo que emana da minha equipe.

E o desespero leva ao erro...

Ainda temos provisões para mais três dias.

Eu mesmo fui ferido e sinto muita dor no corte na minha coxa direita. Se não escapar logo, mesmo que saia com vida talvez não sobreviva a uma infecção.

A caminho daqui passamos por um lago de água cristalina e por algum motivo a partir dali não fomos mais seguidos.

Aqui, no lugar onde nos escondemos, há apenas uma estátua.

Ela é pouco maior que um humano e está parada de pé.

Foi tão bem esculpida que chega a parecer viva.

O buraco em seu peito lembra a imagem da divindade pintada na parede.

Imagino que em algum momento, por algum motivo, a divindade tenha morrido.

Talvez atacada por um demônio? Isso explicaria as criaturas que hoje ocupam esse lugar?

Mas por que colocar essa estátua em um lugar tão longe?

Não…

Não é hora para pensar nisso.

Precisamos sair daqui!

 

Décima quinta noite de Egregoro do quarto ano de Raquin O Grande
Interior da caverna de Rashaag.

 

Meu fim está próximo e acho que entendo tudo com mais exatidão agora.

Se existem deuses vagando pela terra, com certeza nenhum deles mora aqui.

Durante toda a minha vida ouvi falar de pessoas que morreram para encontrar respostas. Sempre imaginei o quão irônico isso poderia ser, mas nunca passou pela minha cabeça que este também seria meu destino.

Um a um os homens foram sendo capturados ou eliminados quando decidimos forçar nossa saída deste lugar maldito.

A caverna não é grande, mas esta repleta de lugares escuros onde os diabretes se esconderam para nos emboscar.

Em meu desespero fui guiado para este lugar.

Uma sala que antes estava fechada e que parece ter sido aberta apenas para me aprisionar em seu interior.

“Certo nível de inteligência”, eu escrevi, claramente subestimando o quão astutas podem ser essas malditas criaturas. É obvio agora para mim que os diabretes sabem como abrir e fechar as passagens do interior da caverna. Talvez se movimentem através de algumas que nem sequer notei.

Preso aqui, tenho diante de mim apenas essa fenda circular no chão. Um poço tão escuro e profundo que não é possível enxergar o que poderia haver no fundo.

E pra falar a verdade, pela primeira vez na vida não sei se quero saber.

Aqui, sob a luz da última tocha, gasto o que me resta de energia pensando e escrevendo para minha família.

Torço para que um dia eu seja encontrado e que estas palavras cheguem à minha esposa e à minha filha.

Torço para que saibam o quanto eu as amo...

 

Ewarg Bericwa

Moon Ghost

Escritor, designer, fotografo, musico, programador, ator, jogador, artista marcial e o que mais der na telha. Criador de mundos e alterador de realidades nas horas vagas.

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