Capítulo 13: Nelessis

Continente de Eversephsa
Região de Dissyith Baktah

 

Em algum momento durante a Guerra dos Deuses.

 

                - Você está bem? – a voz suave falando num dialeto humano foi o que fez Cythir abrir os olhos.

 

                A dor emanava de ossos partidos e da pele rasgada e queimada. Com movimentos lentos, rígidos e fracos ele se virou devagar e encarou a mulher ao seu lado.

                Sentada no chão, ela terminava de cobrir o braço direito de Cythir com uma pasta de ervas enquanto o enrolava com faixas.

 

                - Eu não me mexeria muito se fosse você.

 

                Ele entendeu de imediato o que ela quis dizer.

                Ser atacado por um semelhante era completamente diferente de apenas se ferir.

                Normalmente simples machucados já estariam completamente curados e mesmo ossos quebrados estariam inteiros ao fim de um único dia. E apesar de não fazer ideia de quanto tempo havia se passado, Cythir sabia que não havia sido pouco.

                Afinal, ele havia recebido o ataque em fúria de Ubaelmat e naquele momento talvez fosse o único no mundo a ter passado pela experiência e sobrevivido.

                Um feito impressionante, de fato, mas com um custo muito alto.

                Ele queria perguntar quem era ela e por que o estava ajudando.

                Queria saber  há quanto tempo estava ali.

                Mas tudo o que conseguiu foi se esforçar em vão para tentar manter a consciência.

                Contra sua vontade, mais uma vez seus olhos se fecharam e quando voltaram a se abrir, a mulher já não estava mais tão perto e sim sentada ao lado de uma fogueira que ardia aquecendo seu corpo.

                Uma panela fervia junto ao fogo e o cheiro de comida se misturava a fumaça que subia em direção ao teto alto da caverna.

 

                - Está com fome? – ela perguntou enquanto enchia uma vasilha de madeira colhendo o caldo espesso diretamente da panela. – Eu não sou a melhor das cozinheiras, mas... Bem, quais são suas opções, não é mesmo?

 

                Ela se aproximou e parou ao lado de Cythir que a encarava desconfiado.

 

                - O cheiro está bom. – disse mais para si mesma do que para ele enquanto dava voltas e voltas com a colher dentro da vasilha.

 

                Ela pegou um pouco, soprou e esticou a colher na direção da boca do ser celestial que continuo apenas a olhar, sem esboçar qualquer movimento.

 

                - Não quer? Tem certeza? – ela sorriu, mas ao perceber que de nada adiantaria tentar, comeu ela mesma o conteúdo da colher. Ainda arriscou mais uma vez antes de decidir acabar sozinha com o  conteúdo da vasilha.

 

                Cythir apenas continuou a observar enquanto a mulher comia.

                A verdade é que ele não esperava sobreviver e muito menos ser ajudado.

                 Depois de tudo o que havia vivido nos últimos dias, aquela situação não parecia sequer fazer sentido em sua cabeça.

                Mais do que apenas seu corpo, sua mente também estava em frangalhos. Então apenas fechou seus olhos e voltou a dormir.

                Acordou em algum momento da madrugada e se esforçou por conta própria, na ausência da mulher, movendo-se apesar da dor para se alimentar do que ela havia preparado e deixado na panela.

                Sentiu então parte de suas forças se restabelecendo e ponderou a respeito.

                Considerou que a velocidade com que estava se recuperando não era devido apenas a origem de seus ferimentos, mas provavelmente também por que havia sido exilado.

                Ele podia sentir dentro de si.

    Ou mais precisamente, ele não conseguia mais sentir...

                As presenças de seus irmãos e irmãs haviam desaparecido.

                Os portões celestiais foram fechados e ele havia ficado de fora. Já não mais poderia se chamar de divindade. Não era mais um Ermuh’eeria e  portanto parte de seus poderes havia sumido.

                Cythur Natma havia sido condenado há caminhar entre humanos, viver entre eles e sofrer como eles.

                Mas não, ele não seria um deles...

                Ele seria um Drac’za. Um excluído. Banido por seus semelhantes e transformado em demônio.

    Não havia lugar ao qual pertencesse e muito menos um para o qual pudesse voltar.

    Como líder da revolta, ele havia sido derrotado e estava sozinho, mas nada disso parecia realmente importar naquele momento.

                Isso por que, mesmo que enfraquecido, Cythir ainda sentia de quando em quando a energia de Ubaelmat nos arredores.

                Ele sabia que seu irmão não desistiria tão facilmente e  que era apenas questão de tempo até ser encontrado. Nesse momento, fraco como estava, Cythir não teria qualquer chance de se defender.

                Ali, sentado na escuridão, mais uma vez levou a mão ao pingente que carregava no colar junto ao pescoço. Segurou-o entre os dedos e fechou seus os olhos, mergulhando nas sombras de seus próprios pensamentos.

                 Era tarde demais para voltar atrás, cedo demais para desistir e não havia mais nada o que pudesse perder.

                Então, quando a mulher retornou no dia seguinte...

 

Nelessis
                - Qual o seu nome, humana? – Cythir perguntou em tom firme e gentil, movendo-se com sua magia através da escuridão da caverna, abandonando a invisibilidade e aparecendo diante dela com toda altivez que seus ferimentos permitiam.

 

                Ela carregava uma tocha e parou no lugar quando o viu surgir do nada.

                Cythir caminhou lentamente se aproximando. Era quase meio metro mais alto que ela e tinha plena convicção do quão intimidador podia ser para a maioria dos mortais. Ainda assim, se estava com medo a mulher não demonstrou em nenhum momento.

                Pelo contrário, ela esperou ele se aproximar o suficiente da luz da tocha e gastou um tempo analisando seus ferimentos, suas ataduras, suas asas e seu rosto.

 

                - Não me ouviu? – ele a encarou diretamente nos olhos. – Perguntei qual o seu nome?

                - Sou Nelessis. – respondeu enfim com um sorriso no rosto. – Nelessis, do vilarejo de Rashaag.

                - Você está com medo, Nelessis?

                - Eu deveria estar?

 

                A mulher passou por Cythir, largando a sacola no chão e acendendo com a tocha alguns pedaços de lenha que também havia trazido.

 

                - Você é um celestial, não é? – ela perguntou então, tirando de dentro da sacola algumas frutas e um cantil de água. – Então eu não teria por que ter medo...

Moon Ghost

Escritor, designer, fotografo, musico, programador, ator, jogador, artista marcial e o que mais der na telha. Criador de mundos e alterador de realidades nas horas vagas.

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