...O céu.
Por entre a copa das árvores...
Em tons de cinza que logo trariam a chuva...
Ainda de costas no chão, Yue ergueu a mão para o alto e contemplou a luz do dia por entre os dedos da mão espalmada.
...Como se tentasse se agarrar a alguma coisa.
Mas ao que?
As vozes ao redor pareciam distantes e frágeis...
O mundo parecia ainda mais morto e irreal...
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- Abra. – Yue ouviu a voz grave e logo em seguida o som dos ferros se movendo enquanto a porta era destrancada.
Ragan’rey adentrou o lugar torcendo um pouco o nariz e olhando bem ao redor.
Era um homem com seus cinquenta e poucos anos. Barriga saliente, barba branca, pele tingida pelo sol e rugas por todo o rosto.
Em seu uniforme os emblemas que indicavam sua posição como Coronel. Duas patentes acima de Noma’rey;
- Éh... – o velho começou. – Você conseguiu, não é mesmo?
Não era como se esperasse por resposta.
Ao invés disso o homem apenas afastou o balde de dejetos ainda mais para o canto e se sentou de frente para o garoto.
- Sua cabeça é exatamente como esse balde, Yue Jaded. A maior parte dela está vazia e o resto é apenas mijo e merda.
- O que você quer? – o garoto replicou entediado.
- O que? Não está feliz com a minha visita?
O homem sorriu forçadamente antes de trazer a tona seu ar mais sério.
Eles se encararam por longos segundos antes do velho suspirar pesadamente.
- É o fim garoto... Acabou.
Yue nem sequer se moveu.
- Eu venho te acompanhando desde pirralho. Você sabia que no dia em que matou aquele moleque torturador houve uma reunião apenas pra decidir o que faríamos com você?
Ragan’rey se recostou na parede e moveu uma das mãos como se ilustrasse a cena.
- Estavamos todos lá. Eu... Noma’rey... Jinha’rey... Tyr’rey... E seu querido capitão Atan, que se esforçava para explicar por que raios tinha enviado uma criança para a tortura e como um de nossos torturadores mais promissores tinha acabado morto. Ele gaguejava e repetia: “o garoto não respeita as regras, senhor”. – disse imitando de forma tosca a voz e o jeito de falar de Atan. – Houve uma rebelião aquele dia, sabia?
Yue continuava com o mesmo olhar neutro e não respondeu.
- Eu sei que você sabe. – o velho sorriu. – Eu sei tudo sobre você.
Ele tirou de dentro de um dos bolsos da jaqueta um pequeno frasco ornamentado e deu um grande gole antes de oferecer ao garoto que nem sequer se mexeu.
- Não? Bem... Azar o seu. – e deu outro gole antes de guardar e continuar. – ...Eu estava lá quando o curandeiro entrou correndo dizendo que você ia viver. Que havia milagrosamente se regenerado! Tudo! Completamente! ...Até a porcaria dos dentes e dedos! – e balançou as mãos com vigor diante de Yue. – Um problema novinho em folha pra gente lidar.
“Não só Atan, mas todos nós provavelmente parecemos um bando de palhaços incrédulos naquele momento.
Tínhamos por certo que você morreria e que a única questão era como lidar com capitão incompetente e o bando de moleques amotinados que ele falhou em controlar.
Mas ao invés disso... A porra de um milagre.”
Ragan se curvou para a frente e encarou Yue nos olhos.
- Você faz ideia de quanto tempo alguém precisa treinar para atingir o nível de regeneração que você demonstrou aquele dia? Anos...
- “Anos”... – Yue falou ao mesmo tempo que o velho. – Você está se repetindo, velho. Já cansei dessa história. Se está se sentindo sozinho, veio ao lugar errado.
- Eu sempre acreditei que você daria um ótimo soldado, Yue. Não apenas eu, mas os outros também. Todos exceto Noma’rey. – suspirou. – Mas você tinha que pisar nos calos do homem, não tinha?
Yue sorriu e Ragan’rey fechou a cara, imediatamente se colocando de pé.
- Você acha graça?
Silêncio.
- Yue Jaded. – Ragan’rey assumiu uma posição mais firme, demonstrando toda sua autoridade e abandonando seu jeito amigável. – Por todas suas transgressões e por se demonstrar incorrigível e sem arrependimentos. Pelo assassinato de superiores, desacato a autoridade e menosprezo as leis marciais, você foi condenado a morte.
O garoto nem sequer se moveu.
Não parecia surpreso.
- Sua execução está marcada para amanhã ao meio dia e será dada em forma de duelo.
- Duelo?
- A academia militar forma soldados, Yue. E é direito de um soldado morrer lutando.
- E quem é que vai me matar?
- Você sabe quem...
O velho estendeu a mão para Yue na esperança de um cumprimento, mas o garoto apenas o encarou com frieza.
Então ele suspirou e se dirigiu para a porta, batendo duas vezes para que abrissem.
- É uma pena, Yue. – olhou com ressentimento para o garoto. – Apesar de tudo, eu gostava de você.
...E a manhã seguinte veio como todas as outras.
Um café da manhã generoso lhe foi servido ainda dentro da cela e algumas horas depois a porta se abriu.
O grupo de veteranos entrou e sem qualquer aviso partiu para o ataque.
Seis ao todo, em um ambiente apertado.
O primeiro golpe pegou Yue de surpresa, mas ele não caiu.
Ao invés disso partiu para a ofensiva.
E quando a hora chegou, Yue estava pacientemente sentado na cama de pedra.
Seis corpos sangravam inertes no chão.
Todos mortos.
- Idiotas... – foi a primeira coisa que Ragan’rey disse ao encontrar a porta aberta e os corpos no chão. – Pretendiam se vingar?
Yue deu de ombros com indiferença.
- E por que você não fugiu.
- Por que eu não preciso.
Ragan’rey escoltou Yue até o pátio central onde Noma’rey já o aguardava.
Todos os alunos, de todas as a idades e todos os agrupamentos que não tinham uma obrigação imediata, estavam ali reunidos para observar.
- Yue Jaded... – Ragan começou a falar assumindo sua posição ao centro do pátio. – Por todos os seus crimes contra o império e contra o exército, você foi condenado à morte. Mas é costume da nossa academia dar a um soldado o direito de morrer como tal...
Noma’rey deu alguns passos a frente.
- Você ira lutar em duelo contra o major Noma. Sinta-se honrado.
Ragan havia terminado de falar e já pretendia se afastar quando o garoto se pronunciou.
- E se eu sobreviver?
Não foram poucos os que riram e o som de conversas trocadas em sussurros se espalhou pela multidão.
- Você não vai. – Noma replicou com frieza e confiança, mas Yue insistiu.
- O que acontece se eu matar você?
- Mesmo que vença sua sentença não muda. Você será decapitado. – Ragan replicou com toda sua autoridade e viu o garoto sorrir.
- Eu me recuso...
Não houve sinal para começar.
Yue apenas desembainhou sua espada e correu para o ataque.
Foi quando viu o dia se transformar em noite e o mundo cair em silêncio.
As vozes e pessoas ao redor sumiram de uma só vez.
De repente esqueceu o que estava fazendo, quem era e por que estava ali.
Sua mente se esvaziou.
Seus olhos vasculhavam a imensidão buscando significado.
Já os espectadores viram o garoto começar a correr e poucos passos depois parar no lugar.
Ragan balançou a cabeça negativamente e se afastou com pesar enquanto calmamente Noma desembainhava sua arma e se aproximava de Yue.
Não houve pressa por parte do major. Era quase como se apreciasse o momento.
- Nada pode ser construído sem regras. – começou a falar tranquilamente e ainda assim alto o suficiente para que todos pudessem o ouvir. Ele não olhava para Yue e sim para os espectadores ao redor. – Nada pode se fortalecer sem regras.
A voz de Noma, no entanto, não alcançava Yue.
Havia apenas silêncio e escuridão.
Cada pensamento parecia escapar de sua mente como que varrida para um abismo profundo de esquecimento.
- E nós somos parte da força do império. Somos suas armas e escudos. Somos soldados e como soldados... – Agora estava próximo o suficiente e ergueu sua espada em direção ao rosto do garoto. - ...Vamos agir como tal.
Foram vários os alunos que aplaudiram.
- Aqueles que desrespeitarem as regras não passarão impunes. Não haverá perdão. – o homem falou por fim e os alunos sabiam exatamente o que estava para acontecer quando ele assumiu posição. Afinal, era algo que eles mesmos repetiam dia após dia, exaustivamente. – Que isso sirva de lição para todos vocês.
Mas o golpe nunca chegou a atingir o garoto.
Não houve tempo.
Enquanto Noma se preocupava com seu discurso, em sua própria mente, Yue travava uma batalha diferente.
Seus pensamentos surgiam e desapareciam rápido demais, roubados por essa força externa.
Tudo o que imaginava e tudo o que se lembrava, simplesmente desaparecia quase que instantaneamente.
Havia apenas uma coisa que parecia grande demais para ser tomada.
Os conceitos de corpo, do próprio eu e até mesmo das emoções havia sumido.
Mas a emoção em si...
Não... Aquilo era profundo demais...
Forte demais. Intenso demais...
Mesmo sem forma e sem nome, a raiva ecoava dentro de Yue.
E sem o entendimento de espaço e tempo, raiva era tudo o que existia.
E sem bordas ou limites, ela apenas se expandiu.
E cresceu... Até tocar algo ainda mais profundo que, de súbito, tomou tudo de uma vez só para si.
Agora a raiva tinha sua própria gravidade e subjugava sob sua massa as fraquezas daquela magia.
“Eu sou Yue Jaded.” – o garoto finalmente disse para si mesmo. Primeiro em seus próprios pensamentos e depois...
A espada de Yue atingiu Noma’rey de baixo para cima, atravessando seu abdômen antes que o major tivesse tempo de entender o que estava acontecendo.
- Eu sou Yue Jaded. – o garoto repetiu o pensamento em voz alta. – Eu não me rendo. Eu não me curvo. Eu não obedeço.
Yue arrancou a espada de uma só vez, espalhando um esguicho de sangue pelo chão e então sentiu a magia de Noma’rey mais uma vez tentando alcançar sua mente.
O mundo balançou e sumiu fazendo com que ele desse alguns passos para trás.
Um som alto que apenas ele podia ouvir zuniu alto em sua cabeça fazendo-o largar a arma e se contorcer.
Noma, com uma das mãos no ferimento e com a outra voltada na direção de Yue, começou a se afastar de costas.
As pessoas ao redor estavam em choque, sem conseguir compreender o que acontecia ali.
Então Yue parou de se contorcer e lentamente voltou seus olhos na direção do major.
- Eu sou Yue Jaded... – falou, claramente sentindo dor. – Eu só faço o que eu quero... E hoje... Todos vocês vão morrer aqui.
O garoto sentia como se sua cabeça fosse explodir.
Seu corpo inteiro doía. Vozes gritavam em seus pensamentos. Memórias e alucinações saltavam diante de seus olhos...
Sob a convulsão de sensações parecia que ele mesmo estava se partindo em mil pedaços ao mesmo tempo que algo intenso o ordenava a parar e ficar.
...E mesmo assim, ele recolheu a espada do chão.
Foi só quando Yue gritou que Noma’rey percebeu que não havia mais nada que ele pudesse fazer.
Sua mão baixou involuntariamente.
O garoto rebelde que quase nunca sequer abria sua boca para falar, finalmente estava deixando tudo o que havia guardado por anos explodir em gritos que ecoaram por todo o pátio, corredores e salas. O mundo se calou ao seu redor.
E para o major, que era capaz de entrar na mente dos homens e vasculhar seus segredos, aquela emoção era tão intensa que parecia quase palpável.
Por um momento ele a sentiu em seu próprio coração, como uma onda de choque que fez sua respiração parar como se sufocasse sob o peso de uma tsunami.
- Que os deuses nos protejam... – sussurrou para si mesmo, enquanto o garoto conduzia toda a energia de volta para seus músculos, aprimorando seu corpo de uma forma que ele jamais havia visto antes.
Agora Yue estava novamente em silêncio e Noma sabia que ele segurava a espada apenas por capricho. Poderia rasga-lo ao meio com as próprias mãos se assim desejasse, mas ao invés disso ele caminhou lentamente.
Diante do major, Yue atravessou a espada pelo peito do homem rompendo músculos e ossos com a mesma facilidade de quem perfura manteiga com uma faca quente.
Noma cerrou os dentes e gemeu, caindo devagar sobre seus joelhos...
...Mas ainda teve tempo para observar antes de morrer.
- Venham... – Yue provocou a plateia. – Eu quero ver quem é que vai arrancar minha cabeça.
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