Capítulo 14 – Eu sou Yue Jaded

 


...O céu.

Por entre a copa das árvores...

Em tons de cinza que logo trariam a chuva...

 

Ainda de costas no chão, Yue ergueu a mão para o alto e contemplou a luz do dia por entre os dedos da mão espalmada.

 

...Como se tentasse se agarrar a alguma coisa.

 

Mas ao que?

 

As vozes ao redor pareciam distantes e frágeis...

O mundo parecia ainda mais morto e irreal...


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- Abra. – Yue ouviu a voz grave e logo em seguida o som dos ferros se movendo enquanto a porta era destrancada.

 

Ragan’rey adentrou o lugar torcendo um pouco o nariz e olhando bem ao redor.

Era um homem com seus cinquenta e poucos anos. Barriga saliente, barba branca, pele tingida pelo sol e rugas por todo o rosto.

Em seu uniforme os emblemas que indicavam sua posição como Coronel. Duas patentes acima de Noma’rey;

 

- Éh... – o velho começou. – Você conseguiu, não é mesmo?

 

Não era como se esperasse por resposta.

Ao invés disso o homem apenas afastou o balde de dejetos ainda mais para o canto e se sentou de frente para o garoto.

 

- Sua cabeça é exatamente como esse balde, Yue Jaded. A maior parte dela está vazia e o resto é apenas mijo e merda.

- O que você quer? – o garoto replicou entediado.

- O que? Não está feliz com a minha visita?

 

O homem sorriu forçadamente antes de trazer a tona seu ar mais sério.

Eles se encararam por longos segundos antes do velho suspirar pesadamente.

 

- É o fim garoto... Acabou.

 

Yue nem sequer se moveu.

 

- Eu venho te acompanhando desde pirralho. Você sabia que no dia em que matou aquele moleque torturador houve uma reunião apenas pra decidir o que faríamos com você?

 

Ragan’rey se recostou na parede e moveu uma das mãos como se ilustrasse a cena.

 

- Estavamos todos lá. Eu... Noma’rey... Jinha’rey... Tyr’rey... E seu querido capitão Atan, que se esforçava para explicar por que raios tinha enviado uma criança para a tortura e como um de nossos torturadores mais promissores tinha acabado morto. Ele gaguejava e repetia: “o garoto não respeita as regras, senhor”. – disse imitando de forma tosca a voz e o jeito de falar de Atan. – Houve uma rebelião aquele dia, sabia?

 

Yue continuava com o mesmo olhar neutro e não respondeu.

 

- Eu sei que você sabe. – o velho sorriu. – Eu sei tudo sobre você.

 

Ele tirou de dentro de um dos bolsos da jaqueta um pequeno frasco ornamentado e deu um grande gole antes de oferecer ao garoto que nem sequer se mexeu.

 

- Não? Bem... Azar o seu. – e deu outro gole antes de guardar e continuar. – ...Eu estava lá quando o curandeiro entrou correndo dizendo que você ia viver. Que havia milagrosamente se regenerado! Tudo! Completamente! ...Até a porcaria dos dentes e dedos! – e balançou as mãos com vigor diante de Yue. – Um problema novinho em folha pra gente lidar.

 

“Não só Atan, mas todos nós provavelmente parecemos um bando de palhaços incrédulos naquele momento.

Tínhamos por certo que você morreria e que a única questão era como lidar com capitão incompetente e o bando de moleques amotinados que ele falhou em controlar.

Mas ao invés disso... A porra de um milagre.”

 

Ragan se curvou para a frente e encarou Yue nos olhos.

 

- Você faz ideia de quanto tempo alguém precisa treinar para atingir o nível de regeneração que você demonstrou aquele dia? Anos...

- “Anos”... – Yue falou ao mesmo tempo que o velho. – Você está se repetindo, velho. Já cansei dessa história. Se está se sentindo sozinho, veio ao lugar errado.

- Eu sempre acreditei que você daria um ótimo soldado, Yue. Não apenas eu, mas os outros também. Todos exceto Noma’rey. – suspirou. – Mas você tinha que pisar nos calos do homem, não tinha?

 

Yue sorriu e Ragan’rey fechou a cara, imediatamente se colocando de pé.

 

- Você acha graça?

 

Silêncio.

 

- Yue Jaded. – Ragan’rey assumiu uma posição mais firme, demonstrando toda sua autoridade e abandonando seu jeito amigável. – Por todas suas transgressões e por se demonstrar incorrigível e sem arrependimentos. Pelo assassinato de superiores, desacato a autoridade e menosprezo as leis marciais, você foi condenado a morte.

 

O garoto nem sequer se moveu.

Não parecia surpreso.

 

- Sua execução está marcada para amanhã ao meio dia e será dada em forma de duelo.

- Duelo?

- A academia militar forma soldados, Yue. E é direito de um soldado morrer lutando.

- E quem é que vai me matar?

- Você sabe quem...

 

O velho estendeu a mão para Yue na esperança de um cumprimento, mas o garoto apenas o encarou com frieza.

Então ele suspirou e se dirigiu para a porta, batendo duas vezes para que abrissem.

 

- É uma pena, Yue. – olhou com ressentimento para o garoto. – Apesar de tudo, eu gostava de você.

 

...E a manhã seguinte veio como todas as outras.

Um café da manhã generoso lhe foi servido ainda dentro da cela e algumas horas depois a porta se abriu.

O grupo de veteranos entrou e sem qualquer aviso partiu para o ataque.

Seis ao todo, em um ambiente apertado.

 

O primeiro golpe pegou Yue de surpresa, mas ele não caiu.

Ao invés disso partiu para a ofensiva.

 

E quando a hora chegou, Yue estava pacientemente sentado na cama de pedra.

Seis corpos sangravam inertes no chão.

Todos mortos.

 

- Idiotas... – foi a primeira coisa que Ragan’rey disse ao encontrar a porta aberta e os corpos no chão. – Pretendiam se vingar?

 

Yue deu de ombros com indiferença.

 

- E por que você não fugiu.

- Por que eu não preciso.

 

Ragan’rey escoltou Yue até o pátio central onde Noma’rey já o aguardava.

Todos os alunos, de todas as a idades e todos os agrupamentos que não tinham uma obrigação imediata, estavam ali reunidos para observar.

 

- Yue Jaded... – Ragan começou a falar assumindo sua posição ao centro do pátio. – Por todos os seus crimes contra o império e contra o exército, você foi condenado à morte. Mas é costume da nossa academia dar a um soldado o direito de morrer como tal...

 

Noma’rey deu alguns passos a frente.

 

- Você ira lutar em duelo contra o major Noma. Sinta-se honrado.

 

Ragan havia terminado de falar e já pretendia se afastar quando o garoto se pronunciou.

 

- E se eu sobreviver?

 

Não foram poucos os que riram e o som de conversas trocadas em sussurros se espalhou pela multidão.

 

- Você não vai. – Noma replicou com frieza e confiança, mas Yue insistiu.

- O que acontece se eu matar você?

- Mesmo que vença sua sentença não muda. Você será decapitado. – Ragan replicou com toda sua autoridade e viu o garoto sorrir.

- Eu me recuso...

 

Não houve sinal para começar.

Yue apenas desembainhou sua espada e correu para o ataque.

 

Foi quando viu o dia se transformar em noite e o mundo cair em silêncio.

As vozes e pessoas ao redor sumiram de uma só vez.

De repente esqueceu o que estava fazendo, quem era e por que estava ali.

Sua mente se esvaziou.

Seus olhos vasculhavam a imensidão buscando significado.

 

Já os espectadores viram o garoto começar a correr e poucos passos depois parar no lugar.

Ragan balançou a cabeça negativamente e se afastou com pesar enquanto calmamente Noma desembainhava sua arma e se aproximava de Yue.

Não houve pressa por parte do major. Era quase como se apreciasse o momento.

 

- Nada pode ser construído sem regras. – começou a falar tranquilamente e ainda assim alto o suficiente para que todos pudessem o ouvir. Ele não olhava para Yue e sim para os espectadores ao redor. – Nada pode se fortalecer sem regras.

 

A voz de Noma, no entanto, não alcançava Yue.

Havia apenas silêncio e escuridão.

Cada pensamento parecia escapar de sua mente como que varrida para um abismo profundo de esquecimento.

 

- E nós somos parte da força do império. Somos suas armas e escudos. Somos soldados e como soldados... – Agora estava próximo o suficiente e ergueu sua espada em direção ao rosto do garoto. - ...Vamos agir como tal.

 

Foram vários os alunos que aplaudiram.

 

- Aqueles que desrespeitarem as regras não passarão impunes. Não haverá perdão. – o homem falou por fim e os alunos sabiam exatamente o que estava para acontecer quando ele assumiu posição. Afinal, era algo que eles mesmos repetiam dia após dia, exaustivamente. – Que isso sirva de lição para todos vocês.

 

Mas o golpe nunca chegou a atingir o garoto.

Não houve tempo.

Enquanto Noma se preocupava com seu discurso, em sua própria mente, Yue travava uma batalha diferente.

Seus pensamentos surgiam e desapareciam rápido demais, roubados por essa força externa.

Tudo o que imaginava e tudo o que se lembrava, simplesmente desaparecia quase que instantaneamente.

Havia apenas uma coisa que parecia grande demais para ser tomada.

Os conceitos de corpo, do próprio eu e até mesmo das emoções havia sumido.

Mas a emoção em si...

Não... Aquilo era profundo demais...

Forte demais. Intenso demais...

Mesmo sem forma e sem nome, a raiva ecoava dentro de Yue.

E sem o entendimento de espaço e tempo, raiva era tudo o que existia.

E sem bordas ou limites, ela apenas se expandiu.

 

E cresceu... Até tocar algo ainda mais profundo que, de súbito, tomou tudo de uma vez só para si.

 

Agora a raiva tinha sua própria gravidade e subjugava sob sua massa as fraquezas daquela magia.

 

“Eu sou Yue Jaded.” – o garoto finalmente disse para si mesmo. Primeiro em seus próprios pensamentos e depois...

 

A espada de Yue atingiu Noma’rey de baixo para cima, atravessando seu abdômen antes que o major tivesse tempo de entender o que estava acontecendo.

 

- Eu sou Yue Jaded. – o garoto repetiu o pensamento em voz alta. – Eu não me rendo. Eu não me curvo. Eu não obedeço.

 

Yue arrancou a espada de uma só vez, espalhando um esguicho de sangue pelo chão e então sentiu a magia de Noma’rey mais uma vez tentando alcançar sua mente.

O mundo balançou e sumiu fazendo com que ele desse alguns passos para trás.

Um som alto que apenas ele podia ouvir zuniu alto em sua cabeça fazendo-o largar a arma e se contorcer.

Noma, com uma das mãos no ferimento e com a outra voltada na direção de Yue, começou a se afastar de costas.

As pessoas ao redor estavam em choque, sem conseguir compreender o que acontecia ali.

 

Então Yue parou de se contorcer e lentamente voltou seus olhos na direção do major.

 

- Eu sou Yue Jaded... – falou, claramente sentindo dor. – Eu só faço o que eu quero... E hoje... Todos vocês vão morrer aqui.

 

O garoto sentia como se sua cabeça fosse explodir.

Seu corpo inteiro doía. Vozes gritavam em seus pensamentos. Memórias e alucinações saltavam diante de seus olhos...

Sob a convulsão de sensações parecia que ele mesmo estava se partindo em mil pedaços ao mesmo tempo que algo intenso o ordenava a parar e ficar.

...E mesmo assim, ele recolheu a espada do chão.

 

Foi só quando Yue gritou que Noma’rey percebeu que não havia mais nada que ele pudesse fazer.

Sua mão baixou involuntariamente.

 

O garoto rebelde que quase nunca sequer abria sua boca para falar, finalmente estava deixando tudo o que havia guardado por anos explodir em gritos que ecoaram por todo o pátio, corredores e salas. O mundo se calou ao seu redor.

E para o major, que era capaz de entrar na mente dos homens e vasculhar seus segredos, aquela emoção era tão intensa que parecia quase palpável.

Por um momento ele a sentiu em seu próprio coração, como uma onda de choque que fez sua respiração parar como se sufocasse sob o peso de uma tsunami.

 

- Que os deuses nos protejam... – sussurrou para si mesmo, enquanto o garoto conduzia toda a energia de volta para seus músculos, aprimorando seu corpo de uma forma que ele jamais havia visto antes.

 

Agora Yue estava novamente em silêncio e Noma sabia que ele segurava a espada apenas por capricho. Poderia rasga-lo ao meio com as próprias mãos se assim desejasse, mas ao invés disso ele caminhou lentamente.

Diante do major, Yue atravessou a espada pelo peito do homem rompendo músculos e ossos com a mesma facilidade de quem perfura manteiga com uma faca quente.

Noma cerrou os dentes e gemeu, caindo devagar sobre seus joelhos...

...Mas ainda teve tempo para observar antes de morrer.

 

- Venham... – Yue provocou a plateia. – Eu quero ver quem é que vai arrancar minha cabeça.

Moon Ghost

Escritor, designer, fotografo, musico, programador, ator, jogador, artista marcial e o que mais der na telha. Criador de mundos e alterador de realidades nas horas vagas.

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