Capítulo 11 - Aquilo Que Nascemos Para Fazer


 

 

O sonho ainda está claro em sua mente quando Yue desperta.

Não um sonho qualquer... Uma memória, mas com alguma coisa fora do lugar.

 

“O que?”

 

A primeira coisa que o garoto vê é a mão de Versalis bem diante dos seus olhos, com os dedos indicador e polegar tocando suas têmporas como alguém que tenta segurar um copo muito quente.

 

“Eu continuo vivo então...” – Yue pensa ao remover o contato da mão de Versalis com um golpe.

 

O necromante se afasta e Yue se coloca de pé.

Primeiro ele checa seu próprio corpo.

Sente-se melhor. Algumas feridas já quase se fecharam.

Não é apenas seu “aprimoramento” que está falhando. Sua regeneração continua não funcionando como deveria.

 

“Ainda assim...”

 

Olha ao redor e percebe que ainda está no mesmo lugar.

A árvore, o cristal roxo, o lago...

No entanto, horas mais tarde.

O aprimoramento, mesmo quando falha, parece exaurir suas energias.

O que o leva a ultima observação.

 

Versalis está diante dele a apenas alguns passos de distância.

Ele tenta manter a pose, mas parece cansado. Levemente curvado enquanto se segura em seu cajado.

 

“Será mesmo?”

 

Yue desconfia e seus olhos se voltam instintivamente para a lança.

Ele se abaixa e recolhe a arma, mantendo a atenção no adversário.

O garoto sabe que se Versalis está tão fraco quando demonstra, este seria o momento ideal para ataca-lo. E mesmo se não for o caso, valeria o teste.

E ainda assim, mesmo com a lança pesando em sua mão, Yue sente faltar o ímpeto para matar.

Os olhos do garoto estão contraídos em desconfiança quando Versalis fala:

 

- Sente-se.

 

...E sem questionar ou resistir, Yue obedece, largando a lança e se colocando no chão com as pernas cruzadas.

 

“Ele teve tempo de sobra.” – pensa. – “Mas o que seria isso? Algum tipo de controle mental?”.

 

O necromante se aproxima e se senta diante do garoto.

 

- Podemos conversar agora? – seu tom é tranquilo e seguro, mas a proximidade da oportunidade para que Yue o observe com mais atenção.

 

Sua armadura está intacta, mas os ferimentos no rosto derivados do ataque de Ary continuam ali. Talvez realmente esteja cansado, mas não necessariamente mais fraco do que antes.

 

- O que você quer?

- A pessoa que estava nesse cristal... O que você sobre ela?

- Eu não sei nada. – Yue responde depois de pensar um pouco.

- Ela demonstrou alguma forma de poder?

- Magia, você diz?

- Talvez...

- Nada notável.

- Como assim?

- Ela não parece exatamente forte. – o garoto encara Versalis nos olhos com certo desprezo. - Interrompeu a trajetória da minha lança e evitou um soco meu. E bem... Isso até você deve conseguir fazer.

 

Um leve traço de irritação percorre o rosto do necromante, mas acaba sorrindo mesmo assim.

 

- Mas eu consegui te dobrar, não é mesmo?

 

E assim Yue confirma sua hipótese.

Ao invés de simplesmente o matar, Versalis preferiu usar alguma magia de controle.

E mesmo assim, talvez tenha sido tão trabalhoso a ponto de cansá-lo no processo.

Ou talvez só estivesse fingindo cansaço para testar Yue.

A mente do garoto rapidamente concebia algumas hipóteses a respeito do ocorrido, mas de uma única coisa ele tinha certeza.

 

“Fraco...” 

 

Era o que pensava no momento em que devolvia o sorriso com um desprezo ainda maior.

 

O breve dialogo deu espaço para um momento de silêncio que se prolongou enquanto ambos se avaliavam quando subitamente Versalis voltou seus olhos para o alto, erguendo a cabeça num movimento brusco.

 

- Eu a encontrei...

- Bem... Boa sorte com isso. – Yue fala, pegando sua lança e se colocando de pé. Pronto para ir embora dali.

- Não...

 

A voz do necromante vem acompanhada da batida do cajado no chão e Yue sente seu corpo paralisando no lugar.

 

- É você quem deve ir.

 

“Deve?”

               

Yue estava pronto para se virar e contestar quando Versalis abriu o portal e o fez atravessar. Ainda com a palavra ecoando em sua mente.

Talvez tenha sido isso que fez com que os vislumbres de uma memória o atingissem de repente.

Havia essa garota... A tal da Ary?

Não? Sim...?

 

“Talvez.”

 

Por quê?

Estavam em um quarto apertado com duas camas.

Um guarda roupas... Uma escrivaninha... Uma janela com uma cortina velha que mal impedia a luz de entrar...

...E a porta de madeira...

Yue estava prestes a sair quando ela tentou segura-lo.

Com um movimento rápido ele a agarrou pelo punho e pela gola do vestido, trocando de posição e empurrando seu corpo contra a porta, erguendo alto o seu braço.

 

- Se você encostar em mim... Ou sequer chegar perto...

 

“Eu vou matar você...”.

 

Foi assim que ele chegou ao outro lado do portal, caindo de joelhos sobre a grama do chão.

O lugar estava escuro, mas percebeu de imediato que ainda estava em meio a natureza.

Um bosque talvez... Mas onde?

Usou a lança para se por de pé e percebeu a única fonte de luz imediatamente a frente a alguns metros.

Uma cabana cuja porta tinha acabado de se abrir.

 

Yue reconheceu de imediato as pessoas que saíram de lá.

Primeiro Dara, a mulher que estava presa no cristal. E sua imagem lhe pareceu confusa... Como se a reconhecesse de algum lugar antes disso.

Então Nix com seus cabelos chamativos e por fim...

Ary... A garota em suas memórias.

 

A quarta pessoa ele não reconheceu.

A mulher era baixa, não sendo muito maior que uma criança e assim que o viu, imediatamente abriu um portal.

 

“Não...” – Yue pensa, agarrando sua lança e se preparando enquanto a mulher apressadamente empurra as outras três para além do véu.

 

A arma percorre o ar num zunido e a atinge nas costas no exato momento em que o portal que ela criou está se fechando, apenas um breve segundo antes que ela mesma tenha tempo de atravessar.

O ataque foi preciso, mas não foi o suficiente e Yue sabe disso.

A arma não a atravessou.

 

“Esperava mais de uma arma élfica”

 

É o que pensa enquanto caminha lentamente na direção da mulher.

Ela ainda ergue seu cajado contra Yue e num ultimo esforço ergue uma barreira fazendo com que o garoto parasse no lugar.

 

"Aprimoramento..."

 

O soco destrói a barreira de uma só vez e o ele agarra a lança.

Primeiro ela cai de joelhos e então sucumbe deitando de barriga para baixo contra o chão.

Yue força a arma e sente carne e ossos cedendo sob o metal que finalmente atinge o solo do outro lado.

Em seus últimos momentos ele vê a mulher observar sua cabana e tudo o que havia conquistado em vida.

Suas ultimas palavras, no entanto, saem em um sussurro que o garoto ignora completamente.

Atrás de si, além do portal pelo qual foi enviado, Versalis assiste tudo o que aconteceu.

 

- Traga-a até mim. – Yue ouve a voz do necromante em seus próprios pensamentos.

- Então você fala na minha cabeça...

 

A informação é novidade e algo digno de nota.

Do que mais Versalis seria capaz?

O que ele sabe e o que mais conseguiria ver e fazer?

 

Yue arranca sua lança.

Agarra o corpo da mulher por um dos pés e o arrasta pelo chão coberto de grama e folhas para então arremessa-lo através do portal.

Segue então para o interior da cabana.

O lugar é maior do lado de dentro do que aparenta ser pelo lado de fora, mas por algum motivo isso não surpreende Yue.

Ele olha ao redor e vê móveis, livros e artefatos dos mais variados espalhados como decoração.

Mas há também aquilo...

Espectros... Rastros do passado...

Marcações da presença de pessoas que já não estão ali.

Um poder que Yue não possuía e que agora se torna notável. Provavelmente outro feito do Versalis para transformá-lo na arma que ele precisa que Yue seja...

 

O garoto vê Dara, Nix, Ary e também aquela bruxa se movendo pela casa.

Assiste seus movimentos como se ele é quem fosse o fantasma.

Yue entende que está vendo minutos antes de sua chegada e acompanha o rastro da bruxa quando ela se move para uma sala repleta de coisas.

Ela se deita em uma cama onde usa um livro de travesseiro.

 

O garoto recolhe o livro e duas coisas fazem sua mente ferver.

A primeira é ser capaz de ler quando não se lembra de ter aprendido.

De fato, ele poderia jurar que não sabia... Afinal...

 

A segunda é que o livro parece ser sobre Ariadni.

E não qualquer livro, mas uma espécie de biografia.

Algo que com informações até mesmo sobre seus possíveis próximos  passos.

 

Yue faz uma pausa, lembrando dos sonhos e das recentes memórias de quando atravessou o portal.

 

"Por que essa garota esta em minhas memórias? Quem é ela?!"

 

E como a resposta simplesmente não vem, ele guarda o livro e faz o que, mesmo sem saber, foi treinado a fazer.

Yue espalha algumas bebidas pelo chão e fazendo uso do fogo da lareira coloca a cabana inteira para arder.

Ele sai pela porta e para.

Do outro lado do portal Versalis parece mais interessado no corpo da mulher do que em qualquer outra coisa, então Yue dá as costas e começa a se afastar.

...Mas alguma coisa o detém.

Seu corpo não se move e ele simplesmente não consegue ir embora.

 

"Esse eu vou ver sofrer..." – é o que pensa antes de acabar voltando, atravessando o portal e indo para junto do necromante.

 

- Eu achei que você não fosse capaz de matar. – Versalis fala quando o vê. – Mas voc...

- Quem é que você quer que eu mate agora? - Yue o interrompe.

 

Sua paciência para conversas sem sentido está no limite e além disso, ele consegue perceber.

O necromante parece levar aquilo como um jogo.

 

- Venha. - o elfo fala. - Traga o corpo. Nós vamos abri-la para quebrar seu código. Quero entender sua centelha de magia e ver exatamente o que ela fez e como.

 

Yue apenas obedece...

...Pelo menos, por hora.

Moon Ghost

Escritor, designer, fotografo, musico, programador, ator, jogador, artista marcial e o que mais der na telha. Criador de mundos e alterador de realidades nas horas vagas.

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