O velho deixou um sorriso estranho transparecer em sua face. Um sorriso melancólico, quase triste. Dirigiu-se para a fogueira e cortou um pedaço de carne enquanto o garoto voltava a afiar a espada.

- Esse soldado jamais recuava. Jamais desistia. Pra ele tudo o que existia era a próxima batalha. A próxima missão... O próximo desafio.

- Já entendi. Já sei aonde você quer chegar, velho.

- Não. Você não sabe de nada, garoto. – disse o velho com um ar experiente enquanto mordia a carne com o lado da boca onde ainda tinha dentes bons. Ao longe um lobo uivou. Parecia solitário.

- Seus amigos, parentes, sua família... Todos tentaram avisar. Eles diziam: “Você não precisa disso.”. Diziam: “A vida é muito mais do que lutar... E é muito mais do que matar.”

- Deixa eu adivinhar. Ele não dava a mínima, não é?

- Não, ele não dava a mínima.

- Há! – o garoto exclamou sem surpresa. - A maioria das pessoas não faz a menor ideia do que é ter um sonho.

- A maioria das pessoas não faz a menor ideia das conseqüências de conquistar seus sonhos. – O velho replicou em desaprovação. – Sonhos? Todo mundo tem sonhos, garoto.

- Todo mundo? – O garoto sorriu torto numa obvia reação de desdém.

- Até mesmo você.

- HÁ!

A voz do garoto saiu alta como um grito que se espalhou em meio a escuridão. A seguir um momento de silencio se fez presente antes do velho continuar a contar sua historia.

O garoto decidiu não interromper mais. Seu companheiro de acampamento parecia acreditar que junto com a idade também havia obtido toda a sabedoria do mundo e não havia nada que ele pudesse dizer ou fazer para mudar isto.

- Um após o outro o jovem matou seus inimigos. Um após o outro ele derrotou seus adversários e seus desafiantes. Por vezes ele também foi derrotado, mas ainda assim sobreviveu pra destilar o sabor amargo de ser vencido. E sempre que isto acontecia, mais a sua obsessão crescia também... E quanto mais ela crescia, mais forte ele ficava. Sua fama logo se espalhou por todo o continente. Ninguém em sã consciência ousava desafiá-lo e ele era tido como um herói por toda a nação. Foi nessa época que surgiu um certo dragão...

Os olhos do garoto novamente se desviaram de sua espada e se voltaram na direção do contador de historias num ar sério e tenso.

E o velho já esperava por isso...

Desde o começo estava ali, parado, observando o garoto antes mesmo dele se mover. Como um pescador que aguarda sua isca ser fisgada.

- Um dragão... – Disse o garoto incitando o velho a continuar.

- Sim, um dragão. Um grande e poderoso dragão que deixou toda a população do reino morrendo de medo.

- ...Imagino. - replicou com desprezo.

- E é claro que o jovem soldado iria fazer algo a respeito. Antes mesmo que lhe fosse ordenado ele já havia partido.

Depois de dias de viagem ele finalmente encontrou o dragão. - disse o velho, continuando sua historia. -  Por três dias e três noites os dois travaram uma terrível batalha, mas nem mesmo aquela fera selvagem foi capaz de conter o ímpeto do jovem sedento de sangue.

Foi então que finalmente aconteceu...

O soldado estava ali, com sua espada atravessada no peito do dragão e a ponta fincada no coração ainda a pulsar. O metal começava a esquentar, mas o solado recusava-se a largar sua arma. E o dragão, em seus últimos momentos, conversou com o soldado...

Ele disse:

- Não importa quantos da sua espécie você mate... Nem mesmo quantos da minha espécie você mate... Eu leio sua alma mortal e vejo seus desejos mais profundos. Você jamais será o maior guerreiro nem deste e nem de outro mundo, humano.

O soldado, furioso, torceu a lamina ao ouvir isso. Arrancou a espada com força e deixou o sangue fervente jorrar. O dragão em sua sabedoria sabia que ia morrer, mas continuou a falar:

- Em toda sua vida você só terá uma chance de realizar seu sonho. E sua chance é esta. Mas eu aviso... Haverá conseqüências.

- Você está derrotado e em breve estará morto. Não há nada que você possa me dar que eu não possa tomar. – disse o soldado.

- Engana-se, humano. Fui assassinado, mas por minha própria vontade. Caso não lutasse com você poderia viver pra sempre e você foi simplesmente a mão que escolhi para me dar a morte. – ele fez uma pausa e encarou o jovem com seus olhos gigantes. – Mas e você, garoto? Desde seu nascimento você está cada dia mais morto. Você está derrotado desde que veio ao mundo. Você é humano e está fadado a morrer.

O soldado encarou o dragão nos olhos e manteve-se calado. Era verdade... E ele não tinha argumentos contra aquilo. Nem mesmo sua espada e sua violência poderiam anular a realidade daquele momento.

- Eu vim aqui para morrer por suas mãos. – Continuou o dragão. – Por que assim desejei. Mas ofereço a ti a possibilidade de realizar seus sonhos.

Então o dragão explicou ao soldado...

Disse que ele deveria beber um gole de seu sangue antes que desse seu ultimo suspiro. Que parte de sua alma de dragão lhe seria transmitida e ele não mais morreria de velhice ou doença. Que a única forma de matá-lo seria justamente como ele estava morrendo...

- Com uma espada atravessada no coração. – repetiu o soldado.

- Sim. Então arranque seu coração e guarde-o longe de tudo e de todos... E você nunca mais morrerá.